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“O Presidente devia ter dito claramente ao Governo que não se pode fazer isto ao livro” – Observador
Os portugueses têm poucos hábitos de leitura, são sobretudo as mulheres das classes altas de Lisboa e do Porto que declaram ler livros, segundo alguns estudos. Sendo assim, como se explica que a proibição do comércio de livros em hipermercados e livrarias tivesse levantado tanta polémica, a ponto de o Presidente da República ter vindo tomar posição?O livro é importante para a sociedade, é como o centro gravitacional da nossa cultura. Apesar de algum otimismo, Portugal tem índices de leitura muito baixos. Os números do Eurostat colocam-nos na cauda da lista, não só entre leitores da classe média-alta de Lisboa e do Porto que leem 10 a 20 livros, mas também entre os que leem de zero a 1 livro. Creio que atrás de nós só a Turquia e a Roménia, de entre os países inquiridos. Portanto, a proibição da venda de livros é desde o início uma grande tolice e ameaça entrar no anedotário nacional. As pessoas, mesmo não send leitoras impenitentes, reconhecem a importância do livro. Provavelmente, daqui a uns anos será a música pop ou a moda a ter um papel simbólico na cultura, mas para já é o livro.
É uma discussão sobretudo simbólica?Sim, há aqui uma discussão simbólica sobre o papel do livro. Não só porque Portugal é o único país da Europa com proibição de abertura de livrarias, mas também porque isto levou a uma situação em que as pessoas percebem o absurdo. É uma proibição cheia de excecionalidades. Porque é que os livros passam a poder ser vendidos em hipermercados e não em livrarias?
Aparentemente, este tema tem sido explorado como um exemplo das ambiguidades das regras do confinamento. Concorda?Sim, isso é óbvio. Percebo que estamos a viver uma pandemia e que é preciso tomar medidas, às vezes as pessoas até se esquecem disso, mas se o Estado, as autoridades, o Governo, não reconhecem a excecionalidade do livro, não me parece que estejam no bom caminho. Foi a sociedade, mais uma vez, que reagiu. Houve indignação, deu-se conta do ridículo da situação. É percetível para toda a gente que a proibição da venda de livros não agrava as condições de combate à pandemia nem cria problemas de mobilidade. Haveria problemas de mobilidade na Inglaterra ou na Alemanha, onde as pessoas fazem fila às portas das livrarias para assistirem ao lançamento de um livro ou para comprarem o último livro de fulano. Em Portugal, não temos isso, inclusive temos um mercado bem regulado, com a lei do preço fixo, por exemplo, que combate a concorrência, e ao longo dos anos garantiu-se que o livro tem condições excecionais de venda, como a taxa reduzida de IVA. Por isso, não se percebe a proibição, que levou o Presidente da República a forçar o Governo a recuar, com o primeiro-ministro a reconhecer que tinha sido proibido de proibir.
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Essa imagem de que o decreto do Presidente é que forçou o Governo a recuar terá correspondência com o que se passou nos bastidores?É provável, não conhecemos as conversas, só podemos depreender. Todas as conclusões que tirarmos sobre o que se passou nos bastidores são legítimas, porque o processo não é claro e não é lógico. Não é lógico, num país com défice de leitura e com problemas sérios de acesso ao livro, que o livro não seja considerado um bem essencial, como acontece nos outros países da União Europeia. O ministro da Economia, quando fez um despacho [15 de janeiro] a proibir a venda de livros nos hipermercados, entre outros bens, obviamente entrou numa zona perigosa, a zona das exceções. Durante a proibição total, houve situações absurdas, como as dos hipermercados que colocaram livros escolares e para-escolares à venda, por não serem livros e sim materiais escolares.
Mas porque é que o Governo avançou com a proibição e alegou concorrência desleal? Qual é a lógica da decisão?Não vejo a lógica. Vejo que o Governo achou que poderia proteger da concorrência desleal cerca de 2% do mercado. É o que parece, não tenho nenhum dado que me permita dizer que o Governo foi influenciado por este ou aquele lobby.
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Os 2% são as livrarias independentes.Basicamente. São importantes, decisivas, um símbolo do mercado cultural, mas não representam a totalidade. Devem ser protegidas, claro. Do ponto de vista mais global, impedir que todas as outras livrarias possam estar abertas — e estamos a falar de algo como uma centena de livrarias — é pecaminoso. O vice-presidente da APEL disse que a notícia de que os hipermercados podem voltar a vender livros é uma “pequena boa notícia”. Eu acho que é uma pequena boa notícia porque assim as pessoas acabam por ter acesso ao livro, mas não é uma boa notícia porque continua fechado o sítio onde os livros devem ser preferencialmente vendidos, ou seja, as livrarias [independentes e as grandes redes], que representam cerca de 70% do mercado.
Mas o levantamento da proibição não implica apenas os hipermercados. A partir de agora também será possível comprar no El Corte Inglés, nas FNAC, nos CTT, nas papelarias…Sim, mas repare, o Governo acaba de criar outra situação de desigualdade. Se a FNAC agora já pode vender livros, e acho muito bem, porque é que redes como a Almedina ou a Bertrand não podem abrir também, se cumprirem todas as regras [sanitárias]? Não vejo que houvesse uma corrida às lojas como se tivesse reaberto a Zara ou a Primark. No fundo, com as novas regras, uma livraria que venda jornais pode reabrir, mas só nessa condição. E uma livraria que tenha um espaço de cafetaria também poderá reabrir se decidir começar a vender bolos para fora. De má medida em má medida, acabamos por criar um caso anedótico. Isto não foi bem feito, por inexperiência e depois por arrogância — porque não ouviram as pessoas que representam este sector e que fazem dele uma das áreas das indústrias culturais que criam maior riqueza e mais emprego. Estamos a falar de editores, autores, impressores, distribuidores, livreiros, designers, etc. É um universo que todos os anos cria riqueza, emprego e exportações de centenas de milhões de euros.
